O neoconservadorismo
por Bruno CarmeloPrimeiro, seria importante dizer que Blood Money – Aborto Legalizado é um filme panfletário, do tipo que pretende escancarar uma verdade, persuadir o espectador, afirmando que o ponto de vista exposto é o único válido. No caso, trata-se de um discurso contra o aborto. Como em todos os panfletos, sejam eles progressistas (como os de Michael Moore) ou conservadores (como este aqui), a eficiência é limitada, afinal, os espectadores que já concordarem com o discurso continuarão concordando, e aqueles que forem contrários à ideia dificilmente vão entrar no cinema diante do tom radical escancarado pelas peças publicitárias.
Nestas condições, pode-se dizer que pelo menos este é um filme complexo, encontrando razões muito específicas para defender o seu ponto de vista. Ou seja, o documentário não se contenta com afirmações vagas como “o aborto é errado”, e esforça-se para achar argumentos muito precisos, como o trauma causado às mulheres, a concepção como origem da vida, a pressão dos familiares para o aborto de jovens vulneráveis e uma suposta indústria do aborto, que lucra com a legalização da prática. Concordando ou não com estas ideias, ao menos elas são detalhadas, desenvolvidas com exemplos, dados e farta argumentação.
Outro mérito, talvez o maior do filme, seja o fato de Blood Money – Aborto Legalizado tentar convencer o espectador através de argumentos racionais, e não emocionais. Com exceção de alguns momentos sentimentalistas, rumo ao final, onde criancinhas felizes e mulheres chorosas tomam a cena, o documentário prefere agir em nome da razão. Isso também significa que ele não mede esforços para encontrar argumentos racionais favoráveis ao seu discurso, incluindo a afirmação surpreendente de que o aborto seria pior do que a escravidão ou, mais chocante ainda, que ele seria uma versão moderna do nazismo, por impactar principalmente mulheres negras. O aborto, segundo o filme, teria como objetivo reduzir a população negra nos Estados Unidos.
Afirmações absurdas como estas só são possíveis porque o diretor nunca situa o aborto em um contexto socioeconômico, discutindo a prática apenas do ponto de vista moral, como coisa em si. Diante das estatísticas mostrando que jovens negras abortam mais do que as brancas, o filme não questiona a razão desta escolha, supondo que todas as mulheres abortam apenas pela pressão de familiares ou assistentes sociais malvados. Isso equivale a tratar mulheres como objetos vulneráveis, incapazes de refletir e tomar decisões por si mesmas, incapazes de agir com um mínimo de razão diante de uma gestação indesejada. Ora, talvez algumas delas escolham interromper a gravidez por não terem dinheiro para criar a criança, por terem sido estupradas, por correrem risco de vida ou simplesmente por não desejarem ser mães. Mas seguindo a lógica de diversos militantes “pró-vida”, o cineasta David K. Kyle pensa apenas no lado do bebê, e não no lado das mulheres que o portam e o criam.
Aliás, é surpreendente que Blood Money – Aborto Legalizado não contenha nenhuma opinião favorável ao aborto, nem que seja para condená-la. Em uma discussão tabu como esta, seria normal expor o ponto de vista alheio e explicar as falhas deste raciocínio. Mas o documentário prefere fingir que o “outro lado”, como é chamado, simplesmente não tem ideias. Todos os entrevistados afirmam que a origem da vida obviamente começa na concepção, que todos sabem disso e não podem negar. O mesmo vale para o trauma feminino (todas as mulheres se arrependeriam de abortar, sem exceção) e para as clínicas de planejamento familiar (todas seriam corrompidas, fornecendo contraceptivos defeituosos para produzir mais gestações indesejadas e, consequentemente, mais abortos). Kyle não pretende mostrar que o seu argumento é melhor que os dos militantes “pró-escolha”, ele deseja mostrar que o seu argumento é o único existente.
Ironicamente, o filme é obrigado a aceitar que existem sim, outras maneiras de pensar, já que ele adota um ponto de vista da oposição, da minoria. Ora, se o aborto foi legalizado por diversos Estados americanos, defendido por vários juízes e grupos sociais, então certamente alguém aprova a prática, não? De qualquer maneira, ao se afastar da imagem conservadora do cristianismo (é inusitado que o filme quase não mencione o catolicismo, apesar de defender todos os seus dogmas), Blood Money – Aborto Legalizado adota um ar de filme moderno, contestador, jovem. Ele até parece – quem diria – ter um discurso pseudo feminista, sugerindo que a proibição do aborto seria uma defesa das mulheres, abusadas por instituições e médicos gananciosos.
Termos como “neoconservadorismo” são essencialmente paradoxais, mas se encaixam bem neste caso. O filme traz um discurso muito antigo, com ares medievais, mas revestido com chantagens do século XX (as menções ao nazismo) e um tom esperançoso, proferido pela sobrinha de Martin Luther King, enquanto frases genéricas do pacifista inundam a tela, como se o próprio Luther King estivesse atacando o aborto nessas citações – insinuações, aliás, francamente antiéticas. Apesar de começar discursando pela razão, Blood Money tenta convencer pelo medo, e nunca propõe um diálogo, apenas um monólogo. Este sermão poderia ser proferido por qualquer padre ou pastor, mas ganha ares de juventude rebelde quando é enunciado por uma porção de garotinhas loiras e por um membro da família de Martin Luther King. A câmera tremida e as imagens de baixa qualidade, como se fossem captadas por uma webcam, se encarregam do tom de urgência, de contemporaneidade, de “grito das minorias”. Blood Money é um filme da nova direita, do conservadorismo cool, passivo-agressivo, desesperado ao perceber que não tem mais o monopólio da reflexão social no século XXI.