Eu Vi o Diabo, o Cinema sul-coreano e os desatinos da vingança.
Como suponho que muitos saibam, o Cinema sul coreano ganhou notoriedade por trabalhar muito com tramas sobre vingança, mas, de maneira alguma, seu reconhecimento recai apenas sobre esse fator tão simplório. Não foi a simples vingança, vulgar e violenta, que alçou a Coréia do Sul ao status cinematográfico que possui hoje em dia. O Cinema dos inimigos mortais da Coréia do Norte, de uns tempos pra cá, vem sendo reconhecido também pela exímia qualidade de seus trabalhos cinematográficos – tanto por trabalhar com uma variedade maior de temas, quanto por questões técnicas e textuais –, ainda que, aqui pelo Ocidente, essa qualidade continue sendo alvo de muitos questionamentos. Eu nunca havia assistido a um trabalho propriamente sul-coreano de Kim Jee Woon, e confesso que fiquei bastante surpreso com o que vi. A certeza mais que absoluta de que comecei com o pé direito ao escolher I Saw the Devil para assistir, bateu a minha porta e por aqui mesmo ficou. Que filme magnífico! Fiquei completamente extasiado. Os créditos rolavam tela acima e eu, ainda zonzo de perplexidade, tentava assimilar tudo aquilo que havia acabado de assistir. Foi um filme que, de fato, me destruiu. Eu Vi o Diabo é um trabalho genuíno e não menos que espetacular! A forma que Jee-Woon roteirizou e dirigiu esse filme, diferentemente de The Last Stand (o único longa de Kim Jee-Woon que, até então, havia assistido), me deixou bastante impressionado. Tudo transcorre do jeito certo. São mais de 2 horas de filme em que toda a sua atenção é sugada pela tela.
O filme não fica devendo em nada, praticamente. Toda sua proposta histórica, referente àquilo que a trama pretende transmitir ao espectador, é cumprida com extrema competência. E Kim Jee-Woon não perde tempo. Ele tem pressa em construir sua trama – o que, nesse caso, é bom e completamente justificável –, visando estabelecer de modo imediato um vínculo com quem acompanha a história. Seu roteiro não recorre ou se ampara em diálogos prontamente desenhados. É um roteiro que, embora tenha passagens marcantes, opta por não fazer uso de metáforas em seu texto – o que, de certa maneira, facilita sua digestão. Entretanto, veja bem, a suposta “carência” desse elemento, como muitos devem supor, não desmerece a obra e tampouco seu desenvolvimento e narrativa, já que o propósito do mesmo é de mostrar a evolução de seus dois personagens principais exatamente do ponto em que a trama passa a se solidificar, ou seja, depois que os eventos que a desencadeiam se estabelecem e a história tem seu norte definido. Gosto de acreditar, aliás, que foi justamente essa falta elementar a grande responsável por dar a essa obra seu teor tão próximo da realidade, tão palpável. Mas toda essa concretude não seria possível apenas textualmente, é óbvio. Seria preciso que sua direção se mantivesse atenta e não cometesse deslizes. E é exatamente nesse ponto que a primorosa condução de Jee-Woon entra em ação. A forma como a direção não se segura nas cenas de violência e, ironicamente, não perde a mão, chegou a me arrancar boas risadas, ao parar para pensar a respeito do filme, minutos depois. Talvez isso soe como uma fala meio desencontrada em meio a esse texto, mas se você nunca ouviu falar em "violência na medida certa" ou, lendo isso agora e assimilando uma coisa com a outra, acha que não faz o mínimo sentido, esse filme pode servir como um bom exemplo.
Não me restam dúvidas: um dos fatores que merece maior destaque nesse filme, como venho expondo acima, é sua direção. Mesmo trabalhando em cima de um plot pouco denso e recheado de violência, o diretor não se intimida e mantém o rigor técnico bem abalizado durante toda sua condução, do início ao fim. Isso tudo, somado a boa base textual de seu roteiro, acaba por garantir mais que o necessário para um bom entretenimento. Ou seja, o espectador se sente ainda mais estimulado a continuar acompanhando o desenrolar da trama. Kim Jee-Woon é um cineasta muito sagaz. E o que diferencia seu modo de dirigir filmes do modo como grande parte dos outros diretores asiáticos conduzem seus filmes (tendo ou não a mesma temática), é que Kim consegue não deixar tudo exagerado, muito além da medida e cuspindo artificialidade em quem assiste – como era (e ainda é) muito comum de se ver em grande parte das produções asiáticas. Isso, inclusive e infelizmente, acaba gerando um enorme receio e um consequente distanciamento daquele espectador que não é acostumado a acompanhar o cinema proveniente da Ásia. Há quem diga, nesse meio de receosos, que o Cinema Asiático tem "a mesma cara", referindo-se não só as próprias pessoas que estão ali, de maneira geral, mas também ao jeito caricato com que certas situações em alguns filmes asiáticos se dispõem. Havemos de convir: é bem verdade quando afirmam que, por vezes, o Cinema Asiático é bem grotesco. E eu não tiro a razão de quem fala isso, desde que, tal crítica seja bem direcionada. E aqui, vejam só, está um exemplo mais que perfeito de que o Cinema Asiático não possui "a mesma cara" e, melhor, tem potencial para se igualar a qualquer cinema no mundo. I Saw the Devil, não parece, nem de perto, um costumeiro filme asiático – desde que, é claro, você leve em consideração que este é um trabalho proveniente da Coréia do Sul, que fica na: Ásia.
No tocante das atuações, como já era de se imaginar olhando os nomes presentes no elenco, Byung Hun Lee e, principalmente, Min-sik Choi dão uma aula de interpretação. Realmente incríveis. E eu não consigo encontrar um adjetivo que exprima melhor meu sentimento do que esse. Absurdamente bem atuado. O par de protagonistas nos entrega um trabalho de uma competência tão invejável e de uma força tão aterradora, que o filme alcança um patamar ainda maior por conta de suas interpretações. Byung Hun Lee encarna o noivo ensandecido, cego pelo ódio e que busca, a qualquer custo, vingar a morte de sua mulher, respirando ares anti-heroicos; já Min-sik Choi interpreta, nessa que considero sua atuação mais memorável, um dos seres mais imundos que eu já tive o prazer de ver sendo retratado no Cinema. O filme, graças a eles, alça outro nível. E me deixa triste, confesso, notar como poucas pessoas reconhecem que ali, na dramaturgia asiática, existem atores tão bons ou mesmo melhores que tantos já consagrados pelos cinemas ocidentais. Mas, enfim, sigamos. Além destas e de outras ressalvas já apresentadas anteriormente, creio que seja válido tecer um breve comentário a respeito daquilo que o filme trata: a sede de vingança do Homem. Textualmente, como já disse há alguns parágrafos acima, o roteiro de Eu Vi o Diabo não se arrisca em elencar metáforas para enriquecer sua trama. Porém, contrastando esse ponto, fica nítido que uma das propostas assumidas pelo filme, questionando suas gradações e consequências, é a de pôr em cheque toda aquela retaliação. O quão atormentadora e dolorosa, afinal, pode ser uma busca cega por vingança? E o desfecho – um verdadeiro soco na boca do estômago –, só fomenta ainda mais essas questões, e a assertividade da mensagem que se pretendia transmitir, é garantida. A conclusão de Eu Vi o Diabo é de uma sensibilidade tão devastadora, que se torna impossível não refletir sobre a validade de tudo aquilo que aconteceu. É verdadeiramente descomunal, a força desse filme.
Ao mesmo tempo em que você é lançado em meio ao caos de um Thriller e sua extrema voracidade, I Saw the Devil lhe entrega um Drama capaz de despertar reflexões até mesmo no espectador menos compromissado com as nuances, formas e detalhes da história que o filme apresenta. E não é um draminha qualquer, acredite. Graças a brilhante direção de Kim Jee-Woon, tudo isso se estrutura numa medida cabível, numa medida proporcional àquilo que o filme pretendia. Ele não tropeça e nem avança além da medida. É tudo muito bem balanceado. A naturalidade e a firmeza que a condução de Kim Jee-Woon dá às situações do filme, aliada a sua trama e atuações brilhantes, fazem deste filme não apenas um dos melhores Thrillers já lançados em todos os tempos, mas também uma obra ímpar do cinema sul-coreano, que merece todo o destaque, sobretudo, fora do circuito asiático de Cinema.
E, ainda em tempo, deixo aqui um pensamento que, a meu ver, define bem a avalanche que é esse filme: "Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para dentro de você." [em Genealogia da Moral, de Friedrich Nietzsche - página 105].