Como nos velhos tempos
por Bruno CarmeloNas últimas décadas, grandes estúdios de animação como a Dreamworks e a Pixar se especializaram em tratar a imagem animada com o máximo de realismo possível. Os cabelos do príncipe de Shrek balançavam ao vento como cabelos de verdade; os cachorros, robôs e brinquedos da Pixar eram mais complexos do que muitos personagens de carne e osso. Agora, a Disney começa a efetuar o movimento contrário: levar o estilo mágico da animação à filmagem com atores.
Malévola, estrelado por Angelina Jolie, tinha surpreendido não apenas pelo novo ângulo fornecido à fábula da Bela Adormecida – contada pelo ponto de vista da vilã – mas também pelo verdadeiro festival de efeitos especiais que tornavam a superprodução mais próxima das histórias de super-heróis do que dos contos de fada. Depois dos excessos, a Disney aposta na simplicidade para refilmar a história de Cinderela.
O filme de Kenneth Branagh é uma ótima surpresa. Por não apresentar nenhuma mudança fundamental em relação à trama conhecida, esperava-se apenas um filme-cópia, algo incapaz de conquistar os fãs satisfeitos com a animação original. Mas Cinderela funciona como uma homenagem à animação original, cujo estilo e humor fantásticos impregnam esta história em live action.
Os atores atuam um grau acima do realismo. Cate Blanchett está excelente no papel da madrasta malvada, divertindo-se com os trejeitos demoníacos e os olhares fulminantes da personagem. Helena Bonham Carter é outra escolha acertada para a Fada Madrinha, e está melhor ainda como narradora da história: o desempenho vocal da atriz é tão impressionante que nos faz questionar o porquê de premiações como o Oscar não recompensarem dubladores e narradores. Mesmo as irmãs malvadas de Cinderela nada mais são do que caricaturas de pessoas comuns, exageradas pelos figurinos e cenários.
Dessa vez, nada de efeitos especiais ostensivos, como ocorria com as fadas estranhas de Malévola, ou os coadjuvantes bizarros de Alice no País das Maravilhas. A matriz de Cinderela é essencialmente dramática, e é saudável ver um filme para crianças com ritmo calmo, linear como o filme original, criando diversas cenas sem recorrer à tela verde. Os momentos de efeitos especiais – principalmente a transformação da abóbora em carruagem e o retorno à vida comum pós-baile – são espetaculares justamente por surgirem após longos momentos de filmagem tradicional. Brannagh sabe dosar muito bem a fantasia teatral com a fantasia computadorizada.
A moral da história ainda é ingênua, didática, e repetida dezenas de vezes pela protagonista (Lily James): tenha coragem, e seja gentil. Por trás deste lema, entretanto, existe outra mensagem questionável, destinada às garotas pequenas: seja submissa e inferior, e talvez um homem belo e rico se interesse por você. É uma pena que a Disney não tenha atualizado esse subtexto conservador, já que conseguiram criar personagens femininas mais complexas em Frozen – Uma Aventura Congelante, por exemplo.
Mas Cinderela mantém a visão romântica do mundo, como nos filmes de antigamente. Com poucas cenas de ação, ritmo enxuto e humor comedido, esta não é uma obra feita para a juventude tecnológica. Talvez por isso mesmo consiga ser atemporal, universal – não é à toa que o público adulto do festival de Berlim aplaudiu com tanto entusiasmo o novo filme da Disney. Embora não seja inovador – e nem tenha essa pretensão, diga-se de passagem – Cinderela comprova que uma história simples pode funcionar sem pirotecnia, apostando apenas na nostalgia relacionada ao tom e à trama de uma animação clássica.
Filme visto no 65º festival de Berlim, em fevereiro de 2015.