Livrai-nos do mal
por Bruno CarmeloOs Suspeitos começa com o “Pai Nosso” rezado por Keller Dover (Hugh Jackman), para encorajar o filho a matar seu primeiro animal durante uma caçada. Ao longo da história, outros Pais Nossos serão rezados, geralmente antes ou depois de cenas de violência. Deus será invocado diversas vezes, justificando as decisões controversas de cada um, enquanto terços estão pendurados nos pescoços dos personagens, nos retrovisores dos carros, e mesmo na tatuagem dos policiais. Sem mostrar igrejas, este suspense é marcado, do início ao fim, pelo conflito entre a justiça dos homens e a justiça de Deus.
Afinal, todos os personagens desta história esperam por uma punição divina: o pai Keller Dover, cuja filha foi sequestrada, torce para que a polícia encontre provas contra o principal suspeito; o detetive Loki (Jake Gyllenhaal), quando cruza um padre pedófilo, espera que algum indício venha incriminá-lo; Holly Jones (Melissa Leo), vendo o sobrinho indiciado pelo desaparecimento da garotinha, torce para que Deus mostre o caminho certo aos policiais. Mas nenhuma pista aparece. Este filme é o anti-CSI por excelência: apesar do empenho dos investigadores, as provas não surgem, nenhum cabelo ou pedaço de unha permite culpar quem quer que seja. A justiça divina parece não funcionar, o que força os personagens a agirem com as próprias mãos.
Começa então um jogo complexo e perverso com o espectador: aquele mesmo Keller Dover, pai dedicado encarnado pelo sempre bonzinho Hugh Jackman (quem consegue lembrar do ator em algum papel de vilão?), começa a tomar atitudes muito condenáveis e violentas para salvar a sua filha. O fim justifica os meios? Pode-se torturar um suspeito de assassinato para conseguir provas? Esta mesma discussão, que despertou grande polêmica nos Estados Unidos com a exibição de A Hora Mais Escura, reapareceu após Os Suspeitos. Ninguém sabia dizer ao certo se o filme defendia ou atacava a prática da tortura, até porque a posição do espectador é incômoda: somos levados a nos identificar e a torcer por um torturador cada vez mais bárbaro, já que ele também é um pai corajoso que tenta salvar a sua filha. Dilema complicado, e grande astúcia deste filme.
O diretor Denis Villeneuve já transitou por águas igualmente turvas no edípico Incêndios, e agora prefere abordar os conflitos da moral cristã. O cineasta tem grande domínio do uso de trilha sonora e dos enquadramentos sempre fluidos, com a câmera se movimentando lentamente em direção aos rostos e corpos. Os personagens são vistos por trás de vidros enfumaçados, vitrines cobertas por chuva, poeira, granizo, neve. Aliás, raramente o clima invernal foi tão bem utilizado nos filmes de suspense quanto em Os Suspeitos, produção que faz da meteorologia e dos espaços (casas abandonadas, porões, esconderijos) elementos de grande tensão.
Hugh Jackman e Jake Gyllenhaal estão excelentes em seus papéis, compondo figuras muito distintas do habitual: o ator australiano faz um homem impulsivo, bruto, de falas rápidas e gestos irrefletidos. Já o detetive Loki ganha um tique com os olhos piscando rápido, as tatuagens em forma de símbolos e outros elementos para ilustrar seu caráter obsessivo. Tecnicamente, a produção é impecável, mesmo com suas 2h30 de duração, que acomodam em bom ritmo um número impressionante de reviravoltas.
Talvez alguns elementos não sejam tão bem resolvidos, como a simbologia do labirinto ou a revelação do que realmente aconteceu com a garotinha sequestrada (elemento que tinha sido sugerido ao espectador de maneira tão eficaz), mas Os Suspeitos surpreende por evitar a trajetória da maioria dos suspenses hollywoodianos. Nada de personagens incorruptíveis, nada de pais dispostos a tudo para salvar as suas filhas. Ao contrário da moral e dos bons costumes, temos uma trama sombria, sobre homens e mulheres injustos, pecadores, controversos. Rumo ao final, uma traumatizada Grace Dover (Maria Bello), esposa de Keller, diz ao detetive: “Meu marido fez tudo o que era necessário. Graças a Deus. Ele é um homem bom”. Loki não responde. Este é o silêncio incômodo que paira em toda a história, sobre os pequenos arranjos que os homens fazem, em nome de Deus e da verdade, para construírem a sua própria noção de justiça.