Minha conta
    As Neves do Kilimanjaro
    Críticas AdoroCinema
    5,0
    Obra-prima
    As Neves do Kilimanjaro

    Gente humilde

    por Bruno Carmelo

    1. Michel (Jean-Pierre Darroussin) e Marie-Claire (Ariane Ascaride) formam um casal de classe média-baixa. Ele é operário e líder sindical, ela é faxineira. Eles vivem modestamente, mas são felizes, apoiados em sólidos valores morais (de esquerda). Após uma demissão forçada, ele ganha uma quantia importante de dinheiro dos colegas, para fazer uma viagem, mas é agredido por um jovem colega de trabalho que lhe toma o presente. Temos todas as razões do mundo para odiar este jovem, certo? Errado.

    2. O filme esquece por um momento o casal agredido e, para a nossa surpresa, foca no ladrão (Grégoire Leprince-Ringuet). Ele cuida sozinho dos dois irmãos, e acaba de perder o emprego, assim como Michel. De acordo com seu ponto de vista, o dinheiro ganho de presente não faria a menor diferença para o casal, enquanto ele mesmo sequer tem casa própria e não consegue alimentar os irmãos. Para piorar, ele tem que lidar com esta mãe que os abandonou. Esta mulher é realmente execrável, não é? De modo algum.

    3. Vemos esta mulher (Karole Rocher), abandonada pelo marido, que não tinha condição de criar os filhos, que sequer queria ter engravidado...

    Esta enumeração poderia continuar com diversos exemplos. As Neves do Kilimanjaro mergulha o espectador num painel complexo de personagens pobres, que praticam atos condenáveis, mas todos com suas próprias razões. Ao invés dos famosos filmes morais em que não se julga ninguém, este faz o contrário: julga todos os personagens, mas não toma partido de nenhum – talvez como A Separação, outro excelente drama que insistia em humanizar e compreender as ações de todos. Pelo contrário, ele faz um esforço para compreender todas as ações, inserindo-as num contexto social mais amplo.

    De certo modo, este roteiro denso apresenta um painel exemplar de toda a complexidade do pensamento marxista-leninista nos dias de hoje. Esta filosofia sempre nutriu uma relação bastante ambígua com a violência, ora condenando-a por instituir obrigatoriamente uma relação de dominador e dominado, ora defendendo-a como necessária à revolução estrutural da sociedade. Após o assalto, Michel pergunta à esposa: "Quando éramos jovens, o que pensaríamos da vida que temos hoje em dia?". "Que somos pequenos burgueses", ela responde.

    Michel, magistralmente interpretado por Jean-Pierre Darroussin (ator francês que acumula os papéis de cunho social), contém em si toda a complexidade e a ambiguidade da filosofia de esquerda nos dias de hoje. Ele é um líder, mas prega a igualdade entre todos; um homem que se vinga de seu agressor, mesmo tendo sempre protestado contra a vingança. De maneira melancólica, o diretor Robert Guédiguian consegue se apropriar de um material político sem ser didático nem panfletário, pelo contrário: ao banhar seu filme com cores do pôr do sol e rock meloso dos anos 80, ele imprime a típica nostalgia da esquerda que lutou em maio de 68, e que deve hoje enfrentar a difícil situação social na Europa, em plena época de crise econômica.

    As Neves do Kilimanjaro é adaptado de um poema de Victor Hugo, Les pauvres gens ("Os pobres"), poema sobre a vida miserável dos pescadores, com versos que condenam a triste perda dos ideais e relatam o final inevitável de toda alegria. Alguns chamariam este filme francês de ingênuo mas, pelo contrário, ele transpira o sangue e as lágrimas dos idealistas. Talvez estes versos de Vitor Hugo se comuniquem no imaginário brasileiro com as palavras de Chico Buarque, que exprimia com tanto lirismo o mesmo furor político e social: "E aí me dá uma tristeza / No meu peito / Feito um despeito / De eu não ter como lutar / E eu que não creio / Peço a Deus por minha gente / É gente humilde / Que vontade de chorar".

    Quer ver mais críticas?

    Comentários

    Back to Top