TEM SPOILERS!
Carrie, a Estranha
"Carrie" é baseado no romance homônimo de 1974 de Stephen King, sendo a segunda adaptação cinematográfica e uma releitura do romance, e o terceiro filme da franquia "Carrie". O longa foi escrito por Bryan Fuller (roteirista da série "Hannibal"), dirigido por David Carson (seu último trabalho foi em 2007, com o filme "Em Chamas"), e estrelado por Angela Bettis no papel principal. Na história, Carrie White, uma garota tímida que é assediada por seus colegas de escola, desaparece e uma série de flashbacks revela o que aconteceu com ela.
Após 26 anos da primeira adaptação da obra-prima literária do mestre Stephen King, o clássico do Brian De Palma, eis que surge um remake de toda a história da Carrie. Esta versão foi lançada em 2002 e foi produzida como um telefilme, feita exclusivamente para a TV onde originalmente era exibido pelo canal americano NBC. Aqui no Brasil o filme era constantemente exibido pelo o canal SBT.
Diferentemente daquela versão de 1999, que foi um filme feito com uma proposta de continuação e que jamais deveria ter existido, esta versão aqui é um remake fiel e completamente aceitável. Pois o longa-metragem foi produzido com um baixo orçamento, até por ter sido feito direto para a TV, o que obviamente implicou em vários problemas e algumas dificuldades, como os próprios efeitos especiais, que eram bem fraquinhos. Porém, eu vejo esta versão como um remake que respeita a obra original e consegue manter toda a essência e ser mais fiel ao livro do King do que o próprio filme de 1976 (lembrando que eu li o livro).
Um dos principais acertos dessa versão está exatamente na Carrie White da Angela Bettis, que na minha opinião das três é de fato a Carrie mais estranha. Obviamente a Sissy Spacek é completamente eternizada como a icônica Carrie (e minha preferida das três), porém eu vejo um contraponto muito interessante entre a Carrie da Sissy e a Carrie da Angela. A Carrie da Sissy era mais doce, mais meiga, tinha mais carisma, tinha um rosto mais angelical, se mostrava até mais vulnerável, que imediatamente nos despertava a empatia, o cuidado, o amor, era como se quiséssemos cuidar dela, proteger ela, ser amigo dela. Já a Carrie da Angela realmente se mostra mais estranha até pela sua própria postura, que é mais fechada, mais sisuda, mais soturna, mais amedrontada, mais traumatizada, até pelas suas expressões que são mais pavorosas e que realmente nos assusta. A Carrie da Angela era praticamente um animal acuado, indefeso, sofrido, assustado e misterioso.
É interessante notar que a Angela Bettis tinha 29 anos quando interpretou a Carrie White...a adolescente de 16 anos tímida, solitária, que era ridicularizada e perseguida pelos colegas da escola e constantemente oprimida e dominada pela mãe, uma fanática religiosa que reprime todas as vontades e descobertas normais aos jovens de sua idade. Realmente a Angela conseguia tranquilamente se passar por uma adolescente de 16 anos, assim como a própria Sissy Spacek, que na época também tinha 28 anos.
Em relação ao remake, esta versão segue os mesmos passos da obra do De Palma, se iniciando mostrando o dia a dia da Carrie na escola sofrendo os constantes bullyings e sendo sempre humilhada pelo grupo das garotas. Dentro desse contexto temos a icônica cena do chuveiro, que traz uma metáfora bem interessante, algo como um exaltação no empoderamento, no Girl Power, pois ao menstruar pela primeira vez, Carrie descobre ter poderes paranormais; a telecinese que a adolescente desenvolve simboliza o seu desabrochar e o seu poder de mulher. Especificamente esta cena do chuveiro no filme original é muito mais impactante por ser mais cruel, mais sofrida, mais dolorosa para a Carrie, pois ela sofre por mais tempo e é humilhada com o ataque dos absorventes. Já aqui esta cena perdeu um pouco do impacto, do peso dramático, até por ter ficado uma cena mais simples, mais rápida e sem o ataque dos absorventes, que foi colocado no armário escolar da Carrie. Porém, o que deve ser exaltado nessa cena é a magnífica atuação da Angela Bettis, que nos mostra todo o seu sofrimento pela aquela humilhação que ela acabava de passar.
O filme vai percorrendo todos os momentos que antecedem ao baile de formatura da escola Ewen, por sinal este é o nome original da escola no livro, já que na obra do De Palma foi modificado. É interessante que no decorrer da trama temos alguns flashbacks da infância da Carrie, onde nos mostra um pouco da sua criação que era imposta pela sua mãe. Inclusive temos uma curiosa cena com um ataque de meteoros que caem sobre a casa da Carrie durante seu ataque de fúria contra a mãe (no livro é uma espécie de tempestade de gelo). O longa faz questão de mostrar um certo exagero em algumas exibições iniciais dos poderes telecinéticos da Carrie; como na cena em que ela empurra a mesa do diretor na escola e a cena que ela joga o garoto de bicicleta contra a árvore.
Curioso que nessa versão quando a Carrie descobre os seus poderes telecinéticos, ela passa a buscar alguma informação que possa definir essa origem, como aquelas pesquisas que ela faz na internet, algo que ela pensa estar ligado com algum tipo de milagres iguais os de Jesus Cristo. Ela também passa a treinar a sua mente no controle daqueles seus poderes, o que vai fazendo ela descobrir a força e a proporção que eles podem atingir.
Por fim temos a tão icônica cena do baile!
Por falar no baile, anteriormente eu tinha mencionado que a Carrie da Angela era a mais estranha, que ela conseguia passar exatamente essa postura. Porém, devo afirmar que na cena do baile ela está lindíssima naquele vestido pink, aquela Carrie estranha não existe mais. Esta é uma cena que mostra todo o potencial de atuação da Angela Bettis, pois ela consegue contrastar com maestria a sua chegada no baile completamente assustada, claramente incomodada por não fazer parte daquele ambiente, e logo após ela vai suavizando e entrando mais no clima do local. Temos a cena da votação do Rei e da Rainha do baile que exemplifica muito bem tudo isso que eu destaquei, pois após ganharem a votação ela começa a ficar feliz e arrisca pequenos sorrisos, até por ser um momento que ela jamais havia vivido anteriormente.
Especificamente a cena dos ataques da Carrie no baile e toda proporção que ela toma fora do local é a parte que mais difere da obra do De Palma, e consequentemente é a parte mais fiel ao livro. Toda sequência que se inicia a partir dos ataques da Carrie dentro do local do baile é muito boa, como por exemplo aquela cena do choque, que chega a impactar. A partir daí temos as partes que mais se aproximam do livro, que é justamente toda proporção dos ataques da Carrie não só no baile mas em toda a cidade. Diferente da versão de 1976, a Carrie começa a destruir grande parte da cidade com seus ataques incontroláveis de fúria, o que atingi postos de gasolinas, toda a rede elétrica da cidade, bem como lojas e outros estabelecimentos. A proporção dos ataques na cidade são tão grande que logo aciona todas as autoridades locais. A própria morte da mãe da Carrie é igual no livro, que é justamente um ataque cardíaco causado pela própria Carrie (o que é totalmente diferente da versão do De Palma).
Falando das cenas finais do filme:
Uma parte original dessa versão e que não existe no livro e nem no filme do De Palma, é exatamente toda aquela parte do interrogatório, que vai sendo mesclada com o desenrolar da história, onde constantemente vamos conhecendo os relatos daquela noite pelo depoimento da Sue Snell (Kandyse McClure) e de outras pessoas que sobreviveram ao ataque do baile de formatura. Esta já é uma parte que difere totalmente do livro e do filme original, pois pelos relatos e depoimentos não foi só a Sue que sobreviveu ao ataque, tiveram mais pessoas, inclusive a própria Srta. Desjardin (Rena Sofer). Acredito que essa decisão em deixar mais sobreviventes (e não só a Sue) parte exatamente da ideia que estavam construindo com o final desse filme, pois a divergência com o original e o livro já começa quando a Sue salva a Carrie na banheira logo após ela ter matado a própria mãe. A própria decisão em manter a Carrie viva e nos apresentar aquela cena em que ela está com uma peruca loira ao lado da Sue de frente com o túmulo de sua mãe e o seu (que foi forjado). A partir daí a Sue diz que vai levar a Carrie para a Flórida, porque ela precisa iniciar uma nova vida em um local que ninguém a reconheça. Todo esse final em aberto que é exclusivo dessa versão foi construído pensando em transformar o filme como um piloto de backdoor para uma série spin-off da Carrie, onde ela viveria na Flórida e conviveria com os seus poderes telecinéticos. Porém, por motivos desconhecidos os produtores cancelaram essa ideia e nenhuma série subsequente foi produzida até hoje.
Sobre a Angela Bettis ("Garota, Interrompida") eu não tenho mais o que destacar, acho que eu já destaquei tudo que precisava ser destacado. Só reitero que a sua personificação de Carrie White é excelente, pela sua forma em desenvolver a atuação, o que na minha opinião a deixa em segundo lugar na lista de melhores Carrie, perdendo obviamente para a versão lendária e icônica da Sissy Spacek.
Já a versão de Margaret White da Patricia Clarkson ("À Espera de um Milagre" e "Ilha do Medo") é diferente da lendária versão da Piper Laurie. A Margaret da Piper era mais maléfica, mais protuberante, mais incisiva em seus castigos e até mais opressora. Já a Margaret da Patricia é mais sombria, mais macabra, mais misteriosa, mais densa, ela oprime com uma forma até mais pragmática. Devo afirmar que a Margaret da Patricia Clarkson é muito boa, pois ela consegue o protagonismo merecido e se destaca muito bem, assim como a própria Angela Bettis.
A lendária Sue Snell, que no original foi vivida pela também lendária Amy Irving, dessa vez é interpretada pela Kandyse McClure ("The Good Doctor" e "Private Eyes"). Kandyse está bem na personagem, consegue compor uma Sue até decente, porém sem o mesmo impacto que a Amy Irving teve na época. Rena Sofer ("The Glades") compõe muito bem a Srta. Desjardin, ela consegue dar a exata proporção dessa personagem, tanto nas conversas com a Carrie quanto nos embates com o grupo das garotas. Por falar no grupo de garotas, temos a sua líder, a Chris Hargensen, que aqui foi interpretada pela Emilie de Ravin ("Once Upon a Time"). Emilie também acerta na dose de prepotente, patricinha e maléfica da Chris Hargensen. Tobias Mehler ("Batalha em Seattle") é o Tommy Ross da vez. Assim como o Jesse Cadotte, que foi o cúmplice Billy Nolan, personagem que no original foi vivido pelo John Travolta novinho e no início de carreira.
"Carrie" estreou no canal NBC em 4 de novembro de 2002, quando foi visto por 12,21 milhões de pessoas. Apesar das boas avaliações e de duas indicações a prêmios (um Saturn Award e um ASC Award), o filme foi mal recebido pela crítica de cinema. As atuações, especialmente a de Angela Bettis, foram elogiadas, mas o filme como um todo foi criticado por seus efeitos especiais ruins, falta de uma atmosfera de terror e longa duração.
Devo concordar que os efeitos especiais do filme são de fato ruins, e isso é notado facilmente. A duração eu nem considero como um problema, apesar de este ser o filme mais logo de todas as adaptações da Carrie. Já no quesito atmosfera de terror o filme realmente fica devendo, até por ser um filme sobre a Carrie White e tudo que ela causou com seus poderes, o que também se aplica à sua mãe, que era uma figura maléfica e deturpada pela obsessão da fé. Obviamente esperávamos mais suspense, mais terror, como o original, que é referência nesse quesito, mas nesse sentido o filme realmente deixa a desejar.
Embora o filme fique devendo no quesito suspense e terror, tenha enfrentado vários problemas de produção devido o baixo orçamento de um filme feito para a TV, ainda assim eu considero esta versão da "Carrie" como um remake satisfatório, aceitável e condizente com toda a proporção da magnitude do universo Carrie White. Definitivamente este remake mantém toda a essência da obra original, é o filme mais fiel ao livro (apesar do final), traz uma excelente interpretação da Angela Bettis como Carrie White e, na minha modesta opinião, é a melhor adaptação e o melhor filme da "Carrie" depois da obra-prima e icônica do Brian De Palma. [24/03/2023]