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    O Assassino
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    O Assassino

    Todo mundo erra (mas David Fincher erra menos)

    por Aline Pereira

    O protagonista de O Assassino é guiado pelo coração, mas não se engane: isso não tem nada a ver com emoção. De tempos em tempos, o soturno e magnético personagem de Michael Fassbender (Prometheus) checa seus batimentos cardíacos para tomar decisões como se fosse uma máquina. É nessa ponte entre lógica e angústia que o diretor David Fincher nos leva de volta a seu universo inconfundível, com assinatura ambiciosa e assumindo riscos que nem sempre se pagam, mas sempre – ao menos até aqui – rendem boas experiências.

    Michael Fassbender é o assassino do título. Um homem com muitos (e nenhum) nome, contratado para projetos ultrassecretos que buscam o máximo de eficiência com o mínimo de “bagunça”. E isso envolve observar e esperar. Esperar muito. “Antecipe-se, não improvise”, repete o assassino muitas vezes, em tom de mantra. Solitário e calculista, o assassino aguarda pelo momento ideal para executar o alvo, com uma precisão treinada a custos altos. Até que uma falha acontece e é a partir daí que o longa se desenrola e acompanha o protagonista lidando com as consequências do erro.

    David Fincher é um mestre do pensamento obsessivo

    Entre todas as qualidades de David Fincher como diretor, a habilidade para retratar a obsessão é um dos que mais me torna apreciadora de sua notável filmografia. O pensamento repetitivo e metódico aparece representado com diversas particularidades em muitas de suas principais obras – da adaptação de Garota Exemplar à série Mindhunter, arrancada de nós sem piedade. O protagonista de Michael Fassbender é mais um grande exemplo desta arte, que aqui aparece explorada de forma mental, silenciosa e repetitiva.

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    É claro que não contei quantas palavras o assassino diz em voz alta durante o filme, mas suspeito que não seja muito mais do que Keanu Reeves faz como John Wick em sua franquia. A voz interna, no entanto, é uma avalanche: é através do fluxo de pensamento narrado com firmeza por um bom trabalho de Fassbender que o personagem nos deixa desconfortável com a organização de seus métodos, com o planejamento e, consequentemente, com a frieza com que executa o trabalho. 

    O assassino faz o que precisa ser feito e a jornada para a realização de cada tarefa é pragmática como se fosse programada por uma máquina. “A crueldade de um homem é um pragmatismo de outro”, também nos diz Fassbender em uma de suas muitas frases de efeito. O filme deixa claro, desde os primeiros segundos, que o protagonista é o foco. O que nos leva ao próximo assunto.

    Para o público brasileiro, o nome de Sophie Charlotte no elenco chama atenção, mas a verdade é que a participação da atriz é bastante restrita, embora sua personagem seja um ponto importante para a história de nosso protagonista. Essa restrição, aliás, não vale só para Sophie: O Assassino provavelmente é o filme de David Fincher com o menor número de coadjuvantes e co-estrelas (sempre memoráveis) envolvidos e a importância deles para o desenvolvimento do personagem principal aparece mais na reação aos acontecimentos do que na aparição dos outros atores efetivamente.

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    E não, nem o furacão Tilda Swinton ganhou mais do que alguns tensos e maravilhosos minutos em tela. Temos uma história centrada exclusivamente (acho que podemos definir assim) em seu protagonista. Não à toa, o mergulho em sua mente é profundo e oportuno – uma vez que temos um protagonista cuja profissão é nefasta, é fundamental o detalhamento certeiro de suas motivações e aflições para não torná-lo puramente mal ou detestável. Deu certo e é ótima a sensação incômoda de ver surgir nossa conexão e, por fim, alguma “torcida” (gostaria de colocar mais alguns pares de aspas aqui) para que fique tudo bem com ele no final.

    O Assassino tem muita personalidade na forma e no visual

    Correndo o risco de voltar na mesma tecla da habilidade de David Fincher na tradução visual do pensamento obsessivo, vale destacar aqui os bons recursos que O Assassino faz nesse sentido: um deles é a pontuação de alguns momentos como se fosse um relógio. O protagonista age (ou procura agir, até falhar) como uma máquina e a dureza das transições, dos “tique-taques” e até a divisão do filme em capítulos me ajudaram a sentir a personalidade dele de forma mais prática. 

    Fica nítido que estamos acompanhando alguém obcecado pela ordem e quanto mais os planos saem do controle, maior é a tensão. Ainda no aspecto visual, existe também a sensação, em algumas cenas, de imagens que parecem ilustrações de histórias em quadrinhos. Não à toa: O Assassino é de fato baseado em uma série de HQs de mesmo nome, assinada pelo escritor francês Matz.

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    Todos esses atributos visuais são impulsionados pela trilha sonora, mais uma vez, profundamente conectada com a narrativa. David Fincher volta a trabalhar com os brilhantes músicos e compositores Trent Reznor e Atticus Ross, que assinam a trilha de outros filmes do diretor, como Os Homens Que Não Amavam as MulheresA Rede Social e Mank, longa mais recente de Fincher antes de O Assassino. No filme de 2023, são as canções da banda The Smiths que embalam boa parte da história – uma melancolia compatível com a impressão que o protagonista nos deixa.

    Errar é humano - e dar um jeitinho também

    Não importa quantas vezes o assassino repita seu mantra sobre não seguir o plano e “fazer apenas o que foi pago para fazer”, parece impossível estar atento a tudo em todo momento. Parece impossível, para um cérebro humano, cobrir todos os pontos cegos, acertar os batimentos cardíacos e a respiração como um relógio. Não dá. O fator humano é sempre passível de imprevistos, não existe método à prova de uma súbita mudança de ideia e nem de uma tomada de decisão que não passa nem perto de seguir qualquer lógica.

    Antecipar-se aos acontecimentos é sempre bom, mas o improviso é parte da natureza humana e provavelmente é uma das habilidades que nos trouxe vivos até aqui. E se, por um lado, ter um plano para seguir é o que oferece segurança, são os passos fora da linha que dão início a algumas grandes histórias. Foi o que aprendi com os filmes de David Fincher.

     

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