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    A Névoa Verde
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    A Névoa Verde

    Hitchcockianas

    por Bruno Carmelo

    Para quem embarcar nesta sessão sem qualquer conhecimento do conteúdo, o choque dever ser muito interessante. Trechos de filmes clássicos e contemporâneos são costurados uns aos outros através de uma montagem frenética, que encontra afinidades temáticas entre as cenas e estabelece um fio narrativo em comum. Um homem corre sobre o telhado, e depois vemos outro homem diferente, e mais um, efetuando a mesma ação. Aos poucos, o espectador deve perceber que se trata da narrativa de Um Corpo que Cai, de Alfred Hitchcock, recontada praticamente sem imagens do filme original.

    O efeito é curioso, pois as imagens oferecidas ao público não foram concebidas para conviverem juntas, no mesmo registro. A sobreposição da película com o digital, da cor com o preto e branco, do cinema dos anos 1940 com o pop dos anos XXI acaba por chamar atenção à própria imagem, numa rica costura metalinguística. O diálogo do cinema consigo próprio se acentua pelas brincadeiras nas quais os personagens assistem a outros filmes na televisão, e em alguns momentos, chegam a “dirigir” as cenas, já que seus diálogos são utilizados para mudar os rumos da trama. Além das conexões narrativas, encontramos a associação de símbolos como o pincel de um pintor associado ao movimento de uma escova de cabelo.

    Através das montagens, Guy Maddin consegue criar suas próprias metáforas, oferecendo uma homenagem a Hitchcock e à cidade de São Francisco sem ficar refém do seu tema. Paralelamente, chama a atenção para as escolhas de direção: afinal, qualquer um poderia contar a história de uma pessoa caindo de um prédio, de uma bela loira no museu, mas apenas Hitchcock o fez daquela maneira. A aproximação entre as tramas permite ressaltar as escolhas de enquadramento, luz, atuação – a mise en scène, enfim. O cineasta também se permite retirar os diálogos dos trechos originais, mantendo os momentos de hesitação e respiro entre cada fala, colados uns aos outros. O resultado é abrupto, nonsense, invertendo o processo criativo: desta vez, são as imagens que se encaixam nas vontades de edição, e não o contrário. O filme nasce depois que as imagens já existem.

    A Névoa Verde foi menosprezado por diversos críticos e espectadores que enxergaram no projeto apenas a brincadeira de um cinéfilo aplicado. No entanto, o resultado vai além: além de um rico trabalho de pesquisa, o filme costura tempos, estilos e linguagens diferentes, traçando não apenas uma alusão a Um Corpo que Cai, mas uma releitura rápida da evolução do cinema. Por trás do humor e da aparência inconsequente (vide a própria névoa verde, acrescentada digitalmente nos trechos utilizados), existe um artesanato rebuscado e um exercício conceitual capaz de sublinhar o abismo que separa A Dama de Shanghai de um videoclipe da banda N’Sync, ou ainda A Conversação de Francis Ford Coppola e a série Star Trek. Felizmente, estes registros não são hierarquizados, apenas estudados enquanto textura, matéria, imagem.

    Além disso, o resultado reafirma a montagem como ferramenta criativa, capaz de estabelecer ideias e significados completamente diferentes de suas vocações originais. Se a crítica de cinema é descrita como a capacidade de separar forma de conteúdo (segundo Jacques Aumont e Michel Marie), estabelecendo novas associações, a montagem seria um elemento de produção crítica por excelência. Esta proposta cacofônica e humorística representa uma pérola de cinefilia e seleção do olhar, vinda de um cineasta tão bom em produzir imagens quanto em refletir sobre elas.

    Filme visto na 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2018.

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