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    Tremor Iê
    Críticas AdoroCinema
    1,5
    Ruim
    Tremor Iê

    Delírios do cárcere

    por Renato Furtado

    Uma luz solitária, semelhante ao Sol, move-se livremente em meio à escuridão da madrugada, desbravando uma noite longa e interminável. Demora até que, enfim, a misteriosa fonte luminosa seja revelada: é o farol da moto pilotada com velocidade por Cássia (Deyse Mara). Seu percurso é interrompido, no entanto, por uma figura vestida com um traje branco, um colete à prova de balas e uma máscara de esgrima — um policial de uma realidade distópica, em suma. Rapidamente, o drama de ficção científica Tremor Iê anuncia suas bases: uma proposta ousada e uma mensagem pontual e crítica.

    A trama é costurada com paciência e apuro estético, baseados em um tecido onírico, pelas diretoras Elena Meirelles e Lívia de Paiva, que utilizam o primeiro terço da projeção para estabelecer seu universo. Apesar da evidente presença de automóveis, vestimentas, construções e, acima de tudo, preocupações que nos são familiares, entre outros elementos contemporâneos, somos colocados diante de um Brasil paralelo, governado por um regime ditatorial orwelliano, que promove uma sociedade de violento controle, enganosamente pacificada, e tem como principal alvos a criminalização e a submissão femininas.

    Como projeto, por si só, Tremor Iê atesta sua relevância desde os quadros iniciais, e disso não há dúvidas: sua 1h30 de duração traz às telonas a potência da resistência das mulheres contra um sistema machista e autoritário que as coloca em uma posição de vulnerabilidade e risco constantes. No entanto, toda a força do discurso é diluída por um problema que diz mais respeito à forma do que ao conteúdo: de fato, se há algo que fere este longa é exatamente o desalinho entre a complexidade da estrutura pretendida pelo roteiro, escrito por 10 mãos, e o vacilante domínio demonstrado pelas cineastas sobre a linguagem narrativa em si.

    Durante a primeira meia hora, somos confrontados por imagens de fundo puramente simbólico, denotando o período em que a injustamente encarcerada Janaína (Lila M. Salú) sonha com a sua liberdade e, principalmente, com seu reencontro com uma criança, seu sobrinho. Presa por manifestar-se politicamente, a detenta tem seu espírito traduzido para o público por meio de cenas delirantes e poéticas, visualmente atraentes ainda que desconexas entre si. Tudo culmina, enfim, em uma fuga desesperada da prisão, uma sequência fantástica na qual Janaína precisa atravessar todo um deserto para retornar à Fortaleza.

    Entretanto, no momento em que Meirelles e de Paiva finalmente constituem seu filme como uma produção baseada de ótimos signos e símbolos — fortemente apoiados por um interessante imaginário religioso sincrético que une os mais diversos credos em prática no Brasil —, as cineastas mudam o registro por completo, como se decidissem pegar a via auxiliar de uma estrada da maneira mais repentina. Assim, Tremor Iê, que até então explorara o desejo de reunião de suas duas protagonistas, mergulhadas em seus devaneios, alucinações e aparições fantasmagóricas, transforma-se em uma espécie de docudrama.

    A variação trepidante que destaca um gênero do outro é tão seca e inesperada que é como se um curta tivesse terminado para dar lugar a outro, dando continuidade às histórias de personagens que já conhecemos, mas por meio de uma perspectiva que não se coaduna por completo com a anterior. Pontas soltas são abertas — a criança que Janaína via em sua imaginação desaparece para sempre e a força policial, ironicamente apelidada de "Soldados do Bem" em uma inteligente sacada do script, jamais procura pela prisioneira que escapou — e inicia-se uma trama de recontagem de lembranças de prisões políticas.

    É fato que o segundo filme contido dentro de Tremor Iê inaugura tantas possibilidades teóricas e narrativas quanto o primeiro, mas esta história é igualmente interrompida pela última e ainda mais brusca mudança de direção empreendida pelas cineastas: fazendo um mau uso de elipses, ou seja, resguardando informações que poderiam ajudar a avançar a trama e melhor construir a motivação de suas personagens, o longa torna-se um filme de roubo. Se antes estávamos focados em testemunhos, agora acompanhamos uma operação insana: o roubo dos restos mortais do Marechal Castelo Branco, primeiro presidente da ditadura.

    Dentre todos os conceitos pouquíssimo desenvolvidos pelas realizadoras, é este último o mais envolvente e instigante. Tanto como estratégia de afrontamento de um inimigo como plano para resgatar companheiras de luta que seguem presas, o conceito que fundamenta este terceiro filme contido no interior de Tremor Iê não só comprova a criatividade de suas idealizadoras, como também poderia ser o mote principal de uma trama de sucesso, com um pano de fundo social e politicamente desafiador — é deste material, aliás, que são feitos os melhores produtos da ficção científica.

    O êxito, todavia, só poderia ser atingido caso Meirelles e de Paiva decidissem que seara percorrer. É preciso ter um exímio controle sobre a sétima arte para mesclar gêneros cinematográficos com precisão, sem gerar uma síntese final que é muito menor que a soma de suas partes. Contudo, a ausência de um pulso firme sobre a própria estrutura dramática que idealizam faz com que as cineastas deslizem em suas intenções: o câmbio malsucedido que o ambicioso Tremor Iê realiza entre suas ideias é errático, fraco e frágil demais para o próprio bem do filme.

    Ater-se, por exemplo, às "receitas de bolo" pregadas por manuais de roteiro poderia guiar melhor a empreitada: falta, certamente, uma clareza de definições quanto às mais básicas convenções, desde o arco de suas personagens às reviravoltas da trama. A montagem do longa é falha porque nunca respira, movendo-se em uma frequência impaciente: nunca há tempo suficiente para que o espectador absorva o veículo em que o discurso transmitido é propagado, e esta falha é crítica e fatal para o projeto, apesar de suas intenções e do uso criativo dos limites impostos pela clara restrição orçamentária da produção.

    Ao contrário do que seu título promete, enfim, Tremor Iê é frio, a despeito dos evidentes e essenciais afetos que permeiam sua construção artesanal. A estética ousada, o excelente uso da trilha sonora e o conteúdo provam que estas diretoras têm potencial de sobra para crescer. Mas por enquanto, esta é a expressão de duas artistas que ainda não amadureceram o suficiente para dar conta de suas ambições. A existência deste longa é importantíssima, particularmente por retratar a força do movimento feminista — sobretudo negro, periférico e LGBTQ — nas telonas, mas sua realização deixa demais a desejar.

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